sábado, 26 de setembro de 2009

Rufião

Rufião, o gato, pulou do muro para dentro de um latão, onde avistara lixo fresco. Deliciou-se por alguns minutos e, nauseado, percorreu as ruas da cidade negra. Na verdade não era negra, mas cinza, como todas as cidades; mas a penumbra era a única coisa que se via longe dos postes de iluminação – muitos deles queimados – e das casas que madrugada adentro, teimavam em permanecer acordadas, à espera de algo que pudesse mudar sua sorte. A lua, pálida imperatriz das sombras, olhava altiva para as coisas em movimento, e delas zombava por possuir luminosidade muito mais resplandecente que qualquer pobre mortal – esquecendo-se, porém, que só possuía a luz roubada do sol.

Rufião observou um rato em um canto, segurando um troféu – salame – conseguido, com muito custo, na cozinha daquela velha de chinelos, sempre chorando a morte de seu filho, há mais de 20 anos. Andava incansavelmente segurando uma vela, pelos corredores da casa, cheia de memórias e lágrimas, chiando as pantufas esfarrapadas no piso frio. O rato já se garantira por aquela noite. O amanhã era o amanhã. E ponto.

Com passos leves – ou será que flutuava? – Rufião espiou um pintor vazio, dando pinceladas sem cor em uma tela em branco, a qual chamou “Auto-retrato”. Mas nem sempre foi assim, e talvez ainda não seja; mas o pintor continuava, lentamente, pintando toda a sua falta de perspectivas. Onde foram parar suas Giocondas e Guernicas? Escondiam em seus sulcos cerebrais, cruelmente, fugindo de qualquer neurônio que as quisesse colocar à tona.

O gato continuou e contemplou a derradeira imagem, anterior à aurora. Um senhor de barba e cabelos grisalhos e desgrenhados, magro e maltrapilho, levantava do chão e regia uma sinfonia imaginária – talvez uma saudação ao sol, ainda oculto. Decidira limpar as cinzas de sua cabeça e livrar-se dos sacos que vestia. Dançou sua própria música. Arranjou um pedaço de pão e lembrou de sua velha casa. Como esquecera que tinha um lar, uma família, por tantos anos? Porque se sujeitara a uma reclusão às avessas, a céu aberto? Desembaçou os olhos e viu que os gigantes que o vigiavam e subjugavam eram apenas sombras de edifícios, assim que o sol começou a subir. Voltou ao lar. Também Rufião voltou ao beco e adormeceu.


*Dedicado ao grande amigo delki8*

3 comentários:

Yuri Montanini 27 de setembro de 2009 às 19:56  

Pelo jeito só nós postamos sobre felinos aqui. Lembrei-me desse texto:

http://jornalistasdohawaii.blogspot.com/2009/01/caf-com-leite.html

;*

Rafael Rabelo 30 de setembro de 2009 às 18:37  

Mega, Ultra, Hiper metafórico!

Zé Bokinha 6 de outubro de 2009 às 13:38  

Ninguém entendeu BOSTAS nenhumas, né? Pq o Humberto pode e eu no posso?!?!?!? huaihoiauhaiuhaiuh

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