segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Roteiro de uma morte esperada




Cena 1:

Aurélio, um jovem de classe média burguesa urbana. Um violino em algum bar lá embaixo. A tempestade que chega é da cor dos seus olhos castanhos. Um quadro na parede, uma só forma de vê-lo. De frente. Assim como deveria ter encarado os problemas. Tamborilando os dedos na mesa de madeira, já manchada com a oleosidade da pele branca do garoto que como eu amava Legião Urbana e os Engenheiros do Hawaii. Um cinzeiro de vidro, cheio. Cinza. O fim do mundo já passou. Viver é foda, morrer é difícil.


Cena 2:


A batida das falanges ganha força e perde ritmo. Abstinência. Talvez da droga. Talvez dela. Um pacotinho branco sai do bolso da calça de marca que foi comprada sonegando impostos. uma gota pinga do nariz. Depois de três semanas. A batida na mesa vira uma pancada, quebrando o cinzeiro. O rubro escorre dos dedos, manchando mais ainda o móvel colonial. Mas como chegar até as nuvens com os pés no chão?


Cena 3:


Tenta se recostar na cadeira e o corpo não obedece. Tenta mais forte, só que com força demais, chocando a cabeça cheia de planos contra o chão gelado. Mais sangue. Ele ri. E pensa, 'Por que estou tão preocupado assim?'. Por que do outro lado do Oceano Atlântico tem alguém pra ser só dele. Tão longe que não pode tocar. E ao mesmo tempo tão perto.


Cena 4:


Recupera um pouco os sentidos e se levanta. Vai ao banheiro, fazer a barba. Pra cima, pra baixo, uma a menos. Não tem porquê, nem pra quem. Mais uma dessas atitudes sem pensar. Pra variar. Só sobrou o que ficou. Navalha. Sangue. Pouco, mas vermelho, como o sangue de quem não sabe mentir. Abre a porta do banheiro como se fosse pra forca. E realmente vai.


Cena 5:


Se senta e tira mais cocaína do bolso, o que restou do violão que vendeu. O mesmo violão que acompanhou a voz grave nos acampamentos com Eduardo e Mônica. O mesmo violão companheiro de quando esperava o amor passar. E agora, aspirado com força, toca notas desordenadas em alguma parte do cérebro privilegiado. Longe de qualquer serenidade existente na Terra de Gigantes.


Cena 6:

Olha pra obra-prima na parede, mas só por olhar. Não consegue mais se concentrar, nem manter o foco em algo que não seja ela. Não tem medo do escuro, mas acende as luzes e se senta novamente. Queria estar na varanda, num dia perfeito. Hoje não dá. Procura no fundo do bolso mais droga. Não tem. Não tem. Um estampido seco cala pra sempre o violino do bar lá embaixo. E cala as batidas de um coração que provavelmente só queria estar aí.



3 comentários:

Pedro Henrique Malta Martins 17 de fevereiro de 2010 às 12:48  

Daria um curta metragem ctza

Unknown 21 de fevereiro de 2010 às 09:34  

"... a mão que nos trouxe a doce ilusão de conseguir..."

André Safadi 4 de março de 2010 às 00:15  

Esse roteiro, já com a visão de um cineasta, seria um ótimo filme. Mas o pó seria de extintor de incêndio, pra não infringirmos nada.

  © Blogger template 'Perfection' by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP