sábado, 23 de janeiro de 2010

Quarenta graus, cento e cinquenta reais


Um dia nessa porra dessa guerra sai com os rapazes pra tomar uma cerveja. Todos ficaram trêbados. Fomos dar umas voltas pela vila. E nessas horas, tarde da noite, os fantasmas da guerra começam a aparecer. Uma bala perdida, certa ou um amor de infância que seja mal resolvido. E bagunça vai bagunça vem, resolveram estuprar uma mulher. No começo me opus, mas me julguei incapaz de me colocar contra eles. Nos meus momentos de fúria e raiva nessa guerra já fiz crimes que tenho vergonha de contar a mim mesmo. Simplesmente não fui capaz de proferir uma sequer palavra. Ela tinha dois filhinhos, duns 10 anos. Ela era uma venezuelana, duns 35 anos, muito bonita. Aparentemente solteira e pobre. Mandaram os meninos irem brincar e levaram a mãe pra brincar no quarto.

Fiquei lá fora completamente dopado e fora de minha consciência, e só me lembro de tapas, gritos e palavrões. Saíram um a um, o primeiro, o segundo, o terceiro até o quinto. A cena clichê de um filme. Cigarro no canto da boca, garrafa de cerveja e calças caindo. Depois do terceiro ela não gritava mais. Podia ser julgado na corte marcial como por ter permitido que aqueles soldados rasos fizessem aquilo. Mas eu, um monstro , não tenho o direito de censurar os instintos de outros monstros. Quando o último foi, me falaram : Porra capitão, vai lá. Por uma covardia, medo de ser desrespeitado e outras coisas mais que nunca assumimos pra nós mesmos entrei no quarto.

Cheguei na cama vi aquela linda mulher, fragilizada, sangue escorrendo pelo canto da boca, rosto inchado de ter apanhado, com as roupas rasgadas, tão machucada por dentro que nem forças pra cobrir sua nudez tinha mais. Quando me aproximei ela me olhou com o ódio de um animal selvagem nos meus olhos. Me comovi. Como ela era linda. Peguei um pano pra limpar o sangue do canto de sua boca e me aproximei pra limpar. Ela cuspiu em mim. E de repente ( era disso que eu falava ), não me controlei e dei eu mesmo um murro em seu rosto. Ela desmaiou. Sentei do lado de sua cama, acendi um cigarro e esperei uns 30 minutos. Depois saí de dentro, falei que tinha sido bom e mandei voltarmos pro acampamento. No caminho passamos por um campinho de futebol que seus filhos jogavam futebol.

Pensei nela, dias, meses. Me falaram que o nome dela era Juliana. Procurei o rosto lindo e machucado dela em todos os copos de uísque, puteiros, espelhos e soldados da Venezuela. Nunca a encontrei. Não sei porque aquela violência mexeu comigo. É como se eu fosse um lago com as águas agressivas que de repente se acalmaram. Mas faltava sim, alguma coisa. Faltava ela. Reli todos as cartas que já havia escrito e que nunca ia mandar. Colhi todas as flores que não haviam na beira do asfalto de um país destruído por uma guerra. Seis longos meses e nunca a tirei de minha cabeça.


Um dia eu não aguentei e voltei lá. Bati na porta várias vezes, por quase 25 minutos. E nínguem atendeu. Só de curiosidade dei a volta pelos fundos e vi um jipe do exército parado. E bati na porta dos fundos. Saiu um oficial enrolado em um roupão perguntando o que que eu queria. Não respondi. Apenas fui embora. Algumas vezes a vi no acampamento passando de bicicleta, ou com seus filhos. Outras saindo do quarto de alguns soldados. Como daria qualquer coisa pra falar com ela.

Novamente fui em sua casa e dessa vez estava vazia. Ela abriu a porta, apenas de lingerie. Abriu seca, fria. E de repente viu a farda, como um vendedor de uma loja qualquer, abriu um sorriso e disse um simpático bom dia. Não falei nada, não consegui. E ela passa a mão em meu ombro e diz: 150 reais. Pago, uso. Não falo nada. Volto no outro dia. E no outro. Depois de quatro dias conversamos. Seu marido morreu na guerra, havia perdido seu emprego e a casa que ela poderia alugar era usada pelos brasileiros. Perguntei se ela se lembrava de mim. Ela olha em meus olhos e de repente se enche de fúria, pega a primeira coisa pela frente, cobre os seios e diz: Saia já daqui. E eu: Calma, vamos conversar. E de repente ela começa a chorar. Não aguento, a abraço e lhe dou um beijo.


Nos deitamos na cama e começamos a fazer amor, de repente olho em seus olhos e vejo aquele longíquo animal selvagem de tanto tempo atrás. Ela estica o braço, pega algo no criado mudo ao lado da cama, escuto um estalo ensurdecedor e algo gelado descendo em minhas costas. Era minha pistola. Acho que levei um tiro. A morte é gelada escura e ensurdecedora. Fico embrigado com o cheiro de sexo, perfume de mulher, pólvora e cigarros. Olho pra ela jogada de lado na cama com seu olho vingativo triunfante. Tudo começa a escurecer. Ela olha pra mim e diz:

Filho da puta.

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